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DISCUSSÕES SOBRE A SUJEIÇÃO (OU NÃO) DO CRÉDITO DECORRENTE DE CONTRATOS DE SEGURO GARANTIA NAS RECUPERAÇÕES JUDICIAIS 12604i

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Jéssica Beatriz Mimessi[1] 722o4f

Rodrigo D´Orio Dantas[2]

  1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa apresentar, no cenário atual do sistema de recuperação de empresas, as discussões da doutrina e da jurisprudência sobre o momento de constituição do crédito proveniente de contrato de seguro garantia, para fins de sua sujeição ou não aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49 da Lei no 11.101/2005 (LREF).

Como será abordado, há sensível divergência dentre os operadores do direito sobre a temática, podendo-se destacar entendimentos distintos do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça quanto à concursalidade desse crédito decorrente dos contratos de seguro garantia.

 

2. ‘PONTOS DE VISTA’ SOBRE A CONCURSALIDADE EM ANÁLISE

Os contratos de seguro garantia, principalmente os de garantia pecuniária ofertada pelo segurador, geralmente têm particularidade da condição suspensiva prevista no art. 125[3] do Código Civil, visto que o ‘acionamento’ da garantia só ocorrerá em caso de necessidade (implementação da condição suspensiva, como no caso de ocorrência do sinistro, por exemplo).

A data de celebração do contrato e a data da ocorrência do sinistro (caso ocorra), com a exigibilidade do pagamento em garantia, geralmente são diferentes e estes momentos, no tempo, causam divergência de entendimento em relação à data da constituição do crédito para fins de classificação e sujeição em um processo de recuperação judicial.

Diante das nuances de cada operação/contrato, a disposição do art. 49 da LREF, de que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”, muitas vezes é mais complexa do que parece, até mesmo porque há uma limitação semântica do dispositivo legal que gera, naturalmente, algumas ‘lacunas’. Neste ponto, são esboçados os principais entendimentos adotados para o deslinde da controvérsia.

 

2.1. Sujeição pelo momento da celebração do contrato, e não por sua exigibilidade

Em alguns casos, o entendimento prevalecente adotou a linha de que o objetivo do art. 49 da LREF seria o de considerar a constituição do crédito como o momento “do nascimento” de uma obrigação – ainda que não se tenha implementada a condição suspensiva –, e não o momento de sua exigibilidade. A constituição do crédito se daria, então, com a própria celebração do contrato.

Referido entendimento traz, como justificativa, uma ‘previsibilidade’ decorrente da própria norma, haja vista que não apenas as obrigações de natureza pecuniária, mas qualquer tipo de obrigação (de fazer, de não fazer, de dar coisa certa ou incerta) estaria nela prevista.

O entendimento da constituição da dívida, para esta modalidade contratual, também leva em consideração que a operação de garantia implicaria o provisionamento pelo garantidor (tratando-se muitas vezes de instituições financeiras), que mantém em seu ‘planejamento’ o valor reservado para o cumprimento de uma possível obrigação de pagamento de uma dívida futura.

Nessa linha de raciocínio, a obrigatoriedade de se prestar a garantia seria considerada existente desde o momento da celebração do contrato, sendo esta, a data da constituição de uma relação jurídica obrigacional e por assim dizer, a data da existência do crédito – crédito sujeito se o contrato for celebrado antes do pedido de recuperação judicial.

Este entendimento segue diretrizes gerais apontadas por parte da doutrina,[4] podendo ainda ser observado em alguns julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP): [5]-[6]

Cinge-se a controvérsia quanto ao momento do surgimento ou da constituição do crédito da agravada, o que é crucial para definir a sua sujeição ou não aos efeitos da recuperação judicial, tendo em vista o teor do art. 49 da Lei n. 11.101/05. (...)

A ausência de liquidez não afasta a sujeição do crédito aos efeitos da recuperação judicial. (...) Daí porque se consolidou neste E. Tribunal, o entendimento de que o parâmetro deverá ser a existência do vínculo jurídico.

 

Também não influi na sujeição aos efeitos da recuperação judicial a natureza da obrigação inadimplida, porquanto a expressão "créditos", contida no caput do art. 49 da LREF, não distingue e nem exclui as obrigações de dar, fazer ou não fazer, expressamente contempladas pelo inciso III do art. 51. O tema já foi apreciado pelas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial deste E. Tribunal, ocasião em que se destacou que "não se deve levar em conta, na interpretação do art. 49, caput, da LRF, apenas os créditos de natureza pecuniária, ou seja, aqueles que reflitam pagamento em dinheiro, mas qualquer espécie de obrigação, inclusive a de dar coisa certa ou incerta, de fazer ou não fazer.

E ainda, em julgado mais recente com posicionamento semelhante:

Por assim ser, contratada a operação derivativa antes do pedido de recuperação judicial, é seguro afirmar que o crédito a ele relativo está sujeito à recuperação judicial, a teor do art. 49 da Lei n. 11.101/05, A gênese da operação foi o contrato firmado anteriormente ao pedido de recuperação judicial em que as partes visaram mitigar os riscos decorrentes de variação cambial de contratos firmados em moeda estrangeira, em linha com o Tema 1.051, que estabelece que “a sujeição do crédito no processo de recuperação se dá pela data do fato gerador, independente da data de vencimento ou liquidação, conforme prevê o artigo 49 da LREF“. E o fato gerador da obrigação foi a contratação do hedge antes do pedido de recuperação judicial, embora os seus efeitos tenham sido definidos e quantificados apenas após o referido pedido.[7]

Assim, nesse entendimento, o crédito originado de contrato de seguro garantia, ainda que apresente condição suspensiva, assemelhar-se-ia à existência de uma obrigação existente, o que ensejaria a sua classificação como concursal caso o contrato tivesse sido celebrado antes do pedido de recuperação judicial.

 

2.2. Sujeição pelo momento da exigibilidade, e não pela celebração do contrato

De outra ponta, existem julgados do próprio TJSP e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, em relação ao contrato de garantia, entendem que o momento de constituição do crédito seria quando da ocorrência do sinistro, da prestação da garantia em si – ou seja, o momento de sua exigibilidade (implementação da condição suspensiva) – e não o momento da celebração do contrato.

Como destaca o acórdão do TJSP, [8]

(...) entende-se que o marco temporal que define a concursalidade do crédito é a data da prestação da garantia. Isto porque, verificado inadimplemento do tomador garantido, o agravado prestará a referida garantia ao segurado, momento no qual ele se sub-roga nos direitos do segurado contra as agravantes. Ocorrendo as referidas prestações após o pedido de recuperação, o crédito é extraconcursal.

No mesmo sentido, o STJ, por julgamento de sua 4ª Turma,[9] ainda que se tenha apontado o Tema Repetitivo 1.015,[10] entendeu que:

(...) no seguro-garantia (judicial), a relação existente entre o garantidor (seguradora) e o credor (segurado) é distinta daquela existente entre credor (exequente) e o garantidor do título (coobrigado), visto que no primeiro caso a relação resulta do contrato de seguro firmado e, no segundo, do próprio título, somente sendo devida a indenização se e quando ficar caracterizado o sinistro.

No voto, o Ministro Raul Araújo concluiu que “não tendo havido o implemento da condição suspensiva – sinistro – em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, não há falar em submissão do credor aos efeitos da recuperação judicial”.

A despeito de mencionar o caso de seguro garantia judicial – que é, em certa medida, distinto de contratos de seguro garantia extrajudicial –, o Ministro[11] fez uma analogia entre o contrato de seguro garantia com o contrato de fiança bancária ório de outro principal, honrado pelo fiador, em que três relações jurídicas são estabelecidas:

a primeira une o contratante principal (credor) ao contratado principal (devedor) a segunda, que surge e extingue-se de forma rápida, no geral e como no presente caso, se dá quando o contratante principal, credor, diante da inadimplência do contratado principal, devedor, executa o fiador (instituição financeira/contratante secundário); a terceira, aparece quando o fiador paga a garantia e sub-roga-se no respectivo valor pago, tornando-se credor do contratado principal, o afiançado.

O Ministro[12] invocou também entendimento relacionado ao caso de seguro garantia propriamente dito, norteado por condições suspensivas, em que:

nos negócios jurídicos cuja eficácia esteja sujeita a evento futuro e incerto, haverá a suspensão de alguns efeitos deste em razão da condição suspensiva, como o direito de crédito submetido a determinado acontecimento. Assim, apesar de o negócio jurídico existir, há incerteza com relação ao evento futuro e, por conseguinte, o direito do credor contra o devedor de exigir o cumprimento da prestação somente surgirá com a concretização do episódio que, inclusive, poderá não acontecer (incorrendo em mera expectativa de direito). Assim, caso a implementação da condição suspensiva ocorra após o pedido de recuperação judicial, o direito de crédito só existirá a partir deste momento e, por conseguinte, não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial.

Em relação à condição suspensiva, a decisão ainda menciona a doutrina de Marcelo Sacramone, que afirma que o termo inicial da constituição do crédito é diverso, visto que se subordina o direito a um determinado acontecimento.[13]

Nessa ótica, segundo o entendimento da 4ª Turma do STJ, em contratos de seguro garantia, a constituição do crédito para fins de classificação no art. 49 da LREF surge após a implementação da condição suspensiva contratual.

CONCLUSÃO

Ainda que haja diversos acórdãos e decisões transitados em julgado que aplicaram o referido entendimento proferido pelo STF, inclusive fazendo analogia aos contratos de fiança,[14] é importante ressaltar que o acórdão da 4ª Turma acima mencionado não transitou em julgado, e que o entendimento não possui caráter vinculante, o que mantém em aberto a polêmica que recai sobre o tema.

 


[1] Advogada na área de Insolvência e Recuperação de Crédito, Pós-Graduanda em Direito Empresarial pelo Insper.

[2] Professor de Direito Empresarial do Mackenzie. Advogado, judicial, mediador e árbitro. Especialista, Mestre e Doutor em direito pela PUC-SP. Pós-doutorando em direito pela Universidade de São Paulo.

[3] CC. Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.

[4] “Não só as dívidas já vencidas e impagas, como também as obrigações por vencer, desde que derivadas de operações/fatos geradores anteriores ao pedido, ficam sujeitas aos efeitos de eventual pedido de recuperação” (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luiz Felipe. Recuperação de empresas e Falência: Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. Almedina, 2016. p. 241).

[5] AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Habilitação de crédito quirografário retardatária. Indeferimento liminar, sob o fundamento de que o crédito é extraconcursal. (...) Mérito. Natureza do crédito. Concursal. Interpretação conjunta dos arts. 49 e §3º do art. 6º da Lei n. 11.101/05. Inadimplemento obrigacional que é anterior ao pedido de recuperação judicial. Relação jurídica material preexistente à sentença. Sujeição aos efeitos da recuperação judicial. Habilitação que deve ter prosseguimento. Decisão reformada. Recurso provido (TJSP. AIn 2165006-35.2017.8.26.0000, 1ª CRDE,  Rel. Hamid Bdine; j. 07/02/2018).

[6] RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Crédito a ela sujeito. Inteligência da expressão créditos existentes constante do caput do art. 49 da LRF que não exclui as obrigações de dar, fazer ou não fazer. Impugnação de Crédito. Completa ausência de documentos que desautoriza a modificação do crédito. Acordo homologado judicialmente que não tem o condão de concluir o contrário e não dispensa a necessária comprovação do crédito, ainda mais em hipótese de fraude no ajuste. Recurso desprovido (TJSP. AIn2003909-31.2014.8.26.0000, 2ª CRDE,  Rel. Araldo Telles, j. 08/10/2014).

[7] AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. CRÉDITO CONTRA EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Submissão aos efeitos da recuperação determinada pela data de ocorrência do fato gerador do crédito (tema 1051). Ausência de demonstração do desacerto da aplicação do entendimento estabelecido no E. STJ em julgamentos repetitivos. Razões recursais, no mais, impertinentes nesta via recursal. Decisão mantida. Recurso desprovido, na parte conhecida (TJSP. AI Cível 2073805-20.2021.8.26.0000, 1ª CRDE,  Rel. Beretta da Silveira, j. 14/04/2023).

[8] AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Impugnação de crédito rejeitada. Pretensão de habilitação de créditos decorrentes de contratos de prestação de garantia. Crédito que somente a a existir com a efetiva prestação da garantia. Crédito inexistente no momento da apresentação do pedido recuperacional que não sujeita ao regime concursal. Data do prestação da garantia. Marco temporal que define a concursalidade do crédito. Recurso desprovido (TJSP; AIn2238188-20.2018.8.26.0000, 2ª CRDE,  Rel. Maurício Pessoa; j. 25/03/2019).

[9] STJ. CC 161.667/GO,  Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, j. 31/08/2020.

[10] STJ. “(...) a data da ocorrência do fato gerador como o momento de existência do crédito para fins de submissão aos efeitos da recuperação judicial".

[11] Op. cit.

[12] Op. cit.

[13] “Embora o negócio jurídico já seja existente, a incerteza quanto à ocorrência do evento futuro implica que o direito do credor em face do devedor apenas surgirá após o evento previsto ter ocorrido, o que poderá não acontecer. Enquanto ele não ocorrer, aquele a quem o efeito aproveita terá apenas direito expectativo, mas não o direito de crédito, como faculdade de exigir do devedor o cumprimento da prestação (art. 125 do CC)” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação Judicial de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2023. p. 222-223).

[14] “Nos negócios jurídicos sujeitos a evento futuro e incerto, alguns efeitos são submetidos à condição suspensiva, como ocorre na fiança, pois, embora o negócio jurídico exista, há incerteza quanto ao evento futuro que, inclusive, pode até mesmo não ocorrer. O direito de sub-rogação do fiador somente surge com a concretização da condição da garantia, qual seja com o efetivo pagamento, pelo fiador, do valor garantido ao credor do contrato principal. Se a condição suspensiva vier a ser implementada somente após o pedido de recuperação judicial, o direito de crédito só existirá a partir desse momento e não estará sujeito aos efeitos da recuperação judicial” (STJ. AgInt no AREsp 1.556.044/SP, j. 02/08/2024 e AgInt no REsp 2.153.520/DF, j. 16/12/2022).

Autor(a)
Jéssica Beatriz Mimessi / Rodrigo D´Orio Dantas
Informações do autor
Jéssica Beatriz Mimessi
Advogada na área de Insolvência e Recuperação de Crédito, Pós-Graduanda em Direito Empresarial pelo Insper.

Rodrigo D´Orio Dantas
Professor de Direito Empresarial do Mackenzie. Advogado, judicial, mediador e árbitro. Especialista, Mestre e Doutor em direito pela PUC-SP. Pós-doutorando em direito pela Universidade de São Paulo.

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